2005-01-11

Que bem legislam os nossos deputados... (Para pensar em tempo de eleições)

Quase um ano depois, pela actualidade, recupero um texto inédito que ficou na gaveta. Boa meditação!

Fazer e aprovar Leis é uma, entre muitas, das obrigações que atribuímos aos nossos deputados através do poder do voto. Fazer e aprovar boas Leis, é algo que esperamos dos Deputados que nos representam na Assembleia da Republica. Desta forma, o cidadão eleitor não deve ser indiferente ao teor e qualidade dos textos legislativos produzidos por aqueles que mandatámos em representação da vontade do povo.

Contrariamente ao que sucede em muitas outras democracias, parece que ainda não foi interiorizado pelo nosso cidadão eleitor o dever cívico de acompanhar a actividade da Assembleia da República e de exigir qualidade no trabalho produzido pelos senhores Deputados. Talvez por esse facto, seja possível encontrar na nossa legislação autênticos tratados de incoerência.

Desde as Leis que remetem para regulamentação própria, sem que a mesma seja efectuada em tempo oportuno, até aos próprios textos dentro de uma mesma Lei, no capítulo da incoerência há de tudo e para todos os gostos.

No dia 15.01.2004 foi publicada a Lei n.º 2/2004 que aprova o Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Central, Regional e Local do Estado, a qual é um exemplo paradigmático das inúmeras incoerências que proliferam na nossa legislação.

Esta lei surge enquadrada num programa de modernização da nossa administração pública e deveria ter como objectivo a adequação do estatuto dos dirigentes do serviço público à realidade da sociedade em pleno Séc. XXI. Contrariamente ao esperado, em lugar de grandes novidades e espírito de inovação, limita-se quase a um compilar de legislação dispersa num mesmo diploma, a que acrescem algumas pequenas novidades de "natureza cosmética".

A bitola para efeitos de recrutamento dos dirigentes continua a ser a posse de uma licenciatura quer para os cargos de direcção superior quer para os de direcção intermédia.

No caso dos cargos de direcção superior o recrutamento faz-se «por escolha, de entre indivíduos licenciados, vinculados ou não à Administração Pública, que possuam competência técnica, aptidão, experiência profissional e formação adequadas ao exercício das respectivas funções». No nosso entender muito bem, ainda que haja quem seja contra a discricionariedade sobre a avaliação destes parâmetros.

No caso dos dirigentes intermédios é que a coisa pia mais fino. Para além dos requisitos idênticos aos dos cargos de direcção superior exige-se, cumulativamente, o seguinte: 1) Aprovação no curso de formação específico para Alta Direcção em Administração Pública; 2) Seis ou quatro anos de experiência profissional consoante o grau de responsabilidade da direcção intermédia.

Colocando de lado as excepções de recrutamento previstas para estes dirigentes intermédios, as quais revelam igualmente algumas possibilidades de incoerência, foquemos a nossa atenção na principal incongruência do labor legislativo dos nossos deputados através deste exemplo:

A pessoa X é portadora de um Currículo sólido, baseado em competência técnica, aptidão, experiência profissional e formação adequadas, atributos que a tornam séria candidata para ser escolhida, por quem governa, para um cargo de direcção superior. Desenvolveu a sua carreira profissional maioritariamente no sector privado, possuindo dois ou três anos de antiguidade função pública. É reconhecida profissional e intelectualmente pelas suas capacidades de autodidacta, possui títulos académicos de Mestre e Doutor na sua área de actividade.

Uma pessoa neste tipo de circunstâncias - e creia o caro leitor que cidadãos neste tipo de circunstâncias existem mais pessoas do que aquelas que possa em princípio pensar - segundo a Lei 2/2004 pode exercer um cargo de direcção superior, mas já não é considerada uma pessoa apta para exercer um cargo de direcção intermédia por lhe faltarem alguns dos requisitos cumulativos.

Quer isto dizer que se por um lado é promovida a possibilidade de mobilidade entre o sector privado e público ao nível de direcção superior, pelo outro, continua-se a vedar essa possibilidade ao nível dos cargos de direcção intermédia. Podia o legislador ter ido mais longe, mas não foi. Se por ignorância, miopia na visão ou outra qualquer razão, não sabemos.

O que sabemos é que a legislação existente continua a privilegiar os fluxos de mobilidade no sentido do sector privado, quando seria salutar a mobilidade nos dois sentidos, quando seria salutar o intercâmbio de profissionais entre as actividades públicas e privadas, mesmo ao nível das denominadas carreiras técnica e técnica superior: Será que faz sentido que uma pessoa com provas dadas no sector privado, caso queira e/ou necessite de dar continuidade à sua carreira no serviço público, volte à base da sua carreira? Não perderemos todos nós a oportunidade de um melhor serviço público pelo facto de perdurarem tantas e tão estúpidas barreiras à mobilidade dos profissionais do sector privado para o sector público? Não perderemos com o facto de o sector público ser incapaz de reter muitos dos seus excelentes profissionais? (Profissionais esses que só tende a recuperar em situações críticas de desemprego e, não raras vezes, em condições de grande desgaste psicológico.)

Se os candidatos aos cargos de direcção intermédia são obrigados a aprovação num «curso específico para alta direcção em Administração Pública», não fará sentido, por essa ordem de ideias, que os candidatos aos cargos de direcção superior sejam obrigados a aprovação num curso específico para direcção intermédia?

Em Portugal somos lestos na reprodução da incoerência. Com base nesta Lei, o INA e o CEFA produziram, respectivamente, um regulamento e um plano de formação que permitem a continuidade deste tipo de incoerências. No primeiro caso, as regras de admissão (a um curso cujo programa ainda não é sabido) são baseadas em 5 variáveis promovedoras de barreiras à entrada e não têm qualquer correlação com o perfil e potencial dos candidatos para funções de direcção. No segundo caso, o programa de formação, que admitimos como eventualmente adequado para quem não tenha formação na área de gestão, é redundante para os licenciados na área da gestão, os quais deveriam estar dispensados da sua frequência pela própria Lei.

Sobre o facto de eventuais Mestres ou Doutores nestas matérias não estarem dispensados de frequentar esta formação e de deverem sujeitar-se à avaliação a efectuar por pessoas que só atingiram o grau académico de licenciado, é coisa que nem comentário merece.

Estamos e vivemos no Portugal que temos, onde os Juízes produzem sempre doutas sentenças e só apetece mesmo este não tão douto desabafo - Que bem legislam os nossos Deputados...

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